terça-feira, 24 de setembro de 2013

A Pátria enrolada


 
ilustração: http://www.guardian.sombra.nom.br

São também nossas heranças coloniais do sistema lusitano e espanhol, extremamente inspirados na estrutura eclesiástica, que nos amarram a sistemas de tramitação, decisão e controle, preenchimento de cargos e de um sistema de competências para autorização, aprovação e eleição seja de propostas seja de pessoas. Esta realidade já tradicional faz a raiz de um império de atividades de meio, de ações para Inglês ver, de procedimentos barrocos, sem objetividade finalística, senão a de enrolar, de eternizar os meios do processualismo, prestigiando a forma, a fórmula, os recursos, as entranhas e desdobramentos, entrelaçados num cipoal imoral.

Frente a fatos, não custa crer que o que se valoriza aqui, em termos simplórios e exemplificativo, não é a festa em si, mas todo o tempo de preparo da festa, período em que se gasta muito mais tempo, gera-se mais oportunidades de mudança, gastos, podendo-se planejar e replanejar, alterar de acordo com a conveniência e oportunidade, fazendo disto um campo aberto à negociação, que pode ser prolongada a bel prazer de seus donos.

A Pátria vive assim enrolada em questões e procedimentos bizantinos e barrocos. Faz surgir a politicagem palaciana, corrupta, a verbosidade vazia, o falso e empolado intelectualismo tendencioso e de mau caráter, o jeitinho maneiroso de acomodar situações, a embromação, a expressão da lei da vantagem, do individualismo egocêntrico. Em plena República ainda conservamos palácios disto e daquilo, com seus reis e nobres às custas do dinheiro público.

A ideologia da vida de meio ( o eterno preparo da festa), burocrática na alma, invade tudo e todos; faz mentalidades, revestidas de superioridade, elegância e erudição, mostra-se para que a Juventude almeje repetir este modelo e deseje ser igual. Surge a tapeação hermética, inacessível, com linguagem alongada, maneirosa, mas vazia e feita para ser complexa e falsamente erudita. Torna-se comum a enganação fraseologia, com apostos e divagações para desfocar, para distrair a atenção. A chicana com alegações formais e processuais, a protelação, a busca da prescrição e do esquecimento são comuns e até direitos respeitados. Cria-se no mundo do meio as dificuldades, protela-se, encalha-se, delonga-se, vende-se facilidades.

O país novo, empreendedor, positivo, produtor dobra-se à lista de pré- requisitos, requisitos, exigências, aos relatórios, planilhas, tabelas, informações, requisição, solicitação, carimbos e petição. Pior, cria-se a ideia e a mentalidade fantástica de que se assim não for, algo está errado, alguém está levando por fora. E o medo expande a dúvida. O próprio sistema, burocrático e processualista em essência, condiciona as pessoas a perguntar: e se não existissem tais regras procedimentais, todo este sistema burocrático, não seria muito maior a corrupção e os escândalos? Não seria tudo isto a defesa contra certa vontade popular “a de se fazer, quando na função pública ou os reflexos de um sistema maior que incentiva a ganância, a competição, a comparação e gera megalomaníacos ?” Sendo impossível controlar a cultura instalada há séculos na politicagem e na vida das pessoas, de certo modo, aprimorar-se os meios de controle e procedimentos dá garantias ao país para que haja meios de supervisão. Todavia, isto acaba criando um emaranhado de papéis, que favorece os delinquentes de todos os níveis econômicos e sociais e quando tudo isto é transposto para o Direito Processual acaba constituindo o arcabouço a ser usado para protelar, adiar, alongar e beneficiar alguém.

Para tudo há limites dentro do princípio da razoabilidade. Há uma burocracia mínima, lógica, aceitável como estrutura formal, mas no estágio atual da história do país, já estamos exorbitando, abusando. No entanto, acho difícil mudar esta cultura, esta mentalidade. A pergunta é quando e onde isto dará um nó na vida nacional? Por hora os mantenedores de todo este sistema tentam protegê-lo contra a Polícia Federal e o Ministério Público, barrados na entrada da festa.

Poderia ser perguntado: mas o que se está fazendo é o previsto em lei. O Executivo aplica a lei, o Judiciário julga pela lei . Onde está o problema? No Legislativo. Ali tudo se forma, não é formação ao léu, é ideológica, de propósito, bem paga. Não há nenhuma preocupação com o Brasil , com seu povo, com o interesse público. O estudado e premeditado jogo de palavras na redação do texto legal, as ressalvas, as lacunas, as brechas, os incisos e alíneas excludentes, o uso de palavras ambíguas e frases truncadas para favorecer o jogo da doutrina jurídica, o jogo da interpretação, a dialética absurdamente planejada e assessorada por grandes mestres da atualidade. Tudo já nasce preparado para permitir interpretações tendenciosas e falaciosas. Na elaboração da lei, decretos, normas em geral nasce o problema que desemboca e desenvolve-se no processo judicial, nos recursos e julgamentos do modo já visto e revisto. Somos todos meio culpados disto, por que votamos sem saber em quem, em partidos de ideologia só no papel, em pessoas do poder econômico, em caras bonitas e simpáticas, em fichas sujas. A maioria desconhece o que farão com o poder que concedemos. Alguns farão de tudo para se reeleger e para isso precisam de dinheiro e para ter dinheiro…. Os esquemas são de lesa-Pátria e assim deveriam ser tratados e julgados. Esquemas feitos por especialistas, conhecedores profundos dos sistemas nacionais, dos canais de poder, muito bem assessorados, idealizados e protegidos. Não seria mais positivo criar com tal inteligência empreendimentos honestos, positivos, reais, úteis a todos? Não. É mais fácil fraudar . O estelionatário não quer ser honesto, nunca. Isto seria uma degradação para seu intelecto. Aliás, não seria essa a cultura que veio com as primeiras naus, com os degradados, a de que trabalhar é coisa para escravos? Pensamento este radicalmente diferente do chinês, do japonês e do anglo-saxão, onde o trabalho enobrece o Ser e é fonte da riqueza.

É estratégico fazer pensar no pecado, criando-se sempre, uma falsa insegurança, toda vez que não forem observadas as formas, as regras, os passos procedimentais. Confunde-se a legalidade, tornando ilegal o descumprimento de meras regras de meio, totalmente vazias e inócuas, destinadas a segurar o trâmite, amarrar o caso. Pune-se a rapidez, desconfia-se da agilidade. Valoriza-se o ajeitamento, o palavreado, a estratégia processual e procedimental num país de códigos, regras, normas, resoluções, instruções, portarias, avisos, regimentos e regulamentos, estes dois últimos muitas vezes acima da lei.

Vale o protocolo, o controle do controle do controle, o relatório, o procedimento formalmente completo, as guias, as certidões, as múltiplas autorizações para liberação, para obter a concessão, o alvará, a decisão, o voto, para qualquer atividade. Segue-se certamente as regras pré-definidas, os procedimentos passo a passo, todos para garantir o império do meio processual, elaborado em detalhes científicos e “acadêmicos” para assegurar a maior delonga possível e assim proteger o ofensor, com seus interesses escuso de qualquer esquema micro ou macro. Quantos desses esquemas não estão neste mesmo momento em plena operação, tendo sucesso ou sendo acobertados ?

 É em plena República, o império da burocracia, dirigida por arcaicos interesses dos coronéis das fazendas de interesse e domínio da economia e seus representantes, tudo para proteção do “interesse público” criado pelos mesmos, mediante o estabelecimento de uma mentalidade cartorial, de registro e controle, sem o que nada existe.  

O barroco lusitano e espanhol luta com sucesso para se manter e assim conter a objetividade germano anglo-saxã, produtiva e positiva em resultados para todos. A pátria produz, fabrica, mas não exporta, não ganha, enrola-se em suas entranhas como alguém com cólica. Basta dizer que para relacionar-se com o mundo exterior, usamos um código comercial de 1850, protetor de coronéis da época e até hoje com poder dominante.

Repartições, divisões, sessões, coordenadorias de órgãos públicos da Administração em geral à Justiça enrolam-se em procedimentos, prazos, trâmites, fluxos e refluxos, em processos de meio de uma vida palaciana feita de assinaturas escalonadas, de decisões e atos administrativos complexos, onde o que é valorizado é a forma, não o tempo, não objetivo de vida, a finalidade. Uma vida de papel, mas altamente privilegiada e remunerada; imoral na essência de sua concepção desde há muitos séculos; cheia de protagonistas com a vida garantida, alguns só pensando nas férias e na aposentadoria.

Afasta-se a atividade oficial da eficácia, da competência ao valorizar a eficiência e os meios, crendo que a segurança dos meios levará a um bom fim, o fim de fazer não dar em nada no curso do tempo. Olha-se a rapidez e a agilização com olhos estranhos. Prega-se até que a Justiça é cega e tarda mas não falha.

E ao final, fica bonito e respeitado quem discursa longamente no palco, enrolando a Pátria, fazendo-a tolerar o respeito à coerência “técnica” , o meio pelo meio em si, o brilho da habilidade em palavras de enrolação procedimental, a festa dos meios, onde impera o advogado hábil, o juiz de eloquência, num jogo de cena, de entrelaçamento de interesses encomendados, de dissimulação acobertada pela liberdade de convicção técnica, de meias palavras, palavras ambíguas e pensamentos desconexos. Um salseiro intelectual sem precedentes.

Incrível país dos letrados intelectuais rocambolescos, que melam tudo, que mantem vasos de barro como ícones de sua tradição. Ultra remunerados por uma população de forçados miseráveis em ideias, ações e reações, abusam do discernimento, do bom senso. Vence a burocracia; sai vencido o cidadão honesto, o trabalhador de todas as profissões, o alienado tarefeiro obrigado a concentrar-se na satisfação de suas necessidades mais básicas, a juventude com futuro enrolado, o país de uma Pátria que é obrigada a dormir eternamente, porque é esta a finalidade última, fazer dormir, enquanto poucos estão de olhos bem abertos, dominando e fazendo de tudo e como querem com suas palavras, seus votos, seus recursos palacianos e acadêmicos.

Inebriados com seus fabricados sucessos e eufóricos salários, alguns esquecem da opinião pública, esquecem que lei, Direito e Justiça são aspectos diferentes e quem recebe o Poder para fazer Justiça, deve fazer uma análise, sim, do vento, do tempo, do relento, do movimento, do espaço e do senso médio da Pátria tem sua alma dirigida pela ética e pela Moral católica do humano de todas as fés.

Qualquer um da Pátria, do rico ao pobre, da mais alta autoridade ao jardineiro, todos tem espírito e sabem o que é certo ou errado. A Pátria pode estar dormindo, agora em último sono, mas pode acordar, quando sonhar tornar-se insuportável e cada cidadão for desacreditando no modelo posto. A juventude, letrada ou não, seguirá este modelo dos adultos? Seguirá pelos mesmos caminhos ou já entendeu a essência deste modo de ser? Isto tudo não reforça ainda mais a tendência desta época que é de não se entregar a nada, de não respeitar instituições de qualquer natureza? Isto já não explica a alienação, o abandono dos estudos, a falta de mão de obra qualificada, a falta de médicos e engenheiros qualificados?

Pois é possível perguntar: de tudo isto, de toda esta parafernália montada, é evitada a corrupção, o desvio, os grandes e pequenos esquemas? Não. Tudo é facilitado e protegido pela própria inoperância do sistema adotado. Os grandes esquemas milionários de fraude e corrupção só são descobertos por que há denúncia, mas estão formalmente corretos, preencheram todos os passos e regras da burocracia, pagaram todas as guias e forneceram todos os dados e informações, tem licença e autorização para funcionar. A fiscalização, a auditoria etc jamais chegaria ao centro do esquema e se isto por ventura acontecer e houver pessoas influentes envolvidas, há ainda todo o caminho burocrático processual judicial, que pode contribuir para que o tempo e as palavras intrincadas façam esquecer tudo. E mais, possivelmente só os operadores do esquema vão ser punidos. As grandes figuras nunca, pois isto abalaria todo o jogo político de negociações, cargos e apoios. Certamente, argutos pensadores da intelectualidade sairiam em defesa com suas argumentações, sistêmicas e extraídas da legislação e da doutrina, defendendo que os esquemas menores não podem prejudicar os maiores, pois aqui os “meios” justificam os fins; ademais o que seria da tributação e da geração de empregos nas milhares de lavanderias espalhadas pelo país ? Não seria isto então um legítimo interesse público com base na Constituição?

O mundo burocrático vive assim para si mesmo e seus protagonistas. Age pela convivência e oportunidade, onde o elemento político está assegurado em sua sobrevivência e perpetuação como meio de acomodação, estabilidade e adequação. Consome quase todos os recursos tributários vindos do setor produtivo. Torna inútil toda a malha de controle feita por tribunais de contas, auditorias, inspetorias, controladorias, inspetorias e fiscalização porque torna-se impossível fiscalizar e controlar. Deixa o cidadão atônito, indignado e silencioso, que aceita mais esta calado, afinal, de imediato nada vai lhe atacar o bolso mesmo.

O Estado de todos os níveis só vive para viver de si mesmo numa cornucópia de problemas internos e estruturais; um poço sem fundos, onde o ar é só para seus próprios integrantes. Sendo possível escutar a frase deslumbrada e autoritária: “não me importa a opinião pública”. Nada mais esclarecedor e emblemático para um comportamento vulgar e comum, aquele arraigado de servilismo funcional. Estarrecedora a comum realidade, só recentemente, revelada pela possibilidade de qualquer cidadão assistir pela TV o que se passa e como se passa e quem é quem, promovendo tudo isso com a maior convicção.

Fácil assim de entender porque processos são esquecidos nas prateleiras, sentenças só são emitidas após muito e muito tempo de procedimentos medievais e canônicos, inquéritos e tantos outros processos não dão em nada, autores que ganham, mas nada levam porque, no meio tempo muito bem enrolado, o réu ou o seu patrimônio sumiram. O réu, o autor, seja lá quem for, é público e tem sua opinião. Ela existe, respeitada ou não, mas alguns dos funcionários-rei, os nobres da corte, não estão nem aí para isto. Vivem do intrincado e minucioso tecnicismo de fazer pizza sem hora para servir.

Nas calçadas da cidade segue o silêncio insuportável de cada cidadão, que arde em seu foro íntimo, onde o juiz comum a todos é levado a julgar efetivamente que “algo está profundamente errado.”

Indignados ou inconscientes alienados, todos prosseguem com suas vidas. Afinal, hoje tem jogo de noite, amanhã é outro dia e Deus é brasileiro, vai dar praia. E mais, lembremos que o império da burocracia já sofreu um programa de desburocratização na década de 80, quando para certos procedimentos era exigido até “atestado de vida “ do requerente. Quantos cidadãos, após horas de fila, ao chegarem ao balcão de atendimento eram obrigado a voltar no outro dia porque não estavam de posse do “atestado de vida”. Era uma época de céu azul, a realidade era verde oliva e muitos preferiam estar mortos, mesmo que burocraticamente.

No país de papelada, dos prazos, dos trâmites esquisitos e dos procedimentos ridículos, nem a informática conseguiu agilizar a vida, pois conseguiu aprimorar e consolidar procedimentos e eternizar o período de preparo da festa, tornando-o a própria festa. Tudo com recursos públicos.

No reverso inconsequente e danoso do mundo montado aqui, nasce a impunidade, o sentimento de impotência do cidadão, a constatação de que “ isto vai dar em nada “. É o neoliberalismo da malandragem, alimentado pelas entranhas burocráticas do gigantesco monstro devorador das esperanças e do futuro nacional, já gravemente afetado pelo individualismo egocêntrico e materialismo.

No passar dos séculos, com a reiterada prática burocracia de enrolar e procrastinar para proteger interesses, foi nascendo um modo de ser, uma tradição e uma cultura administrativa burocrática baseada na figura intocável do festejado e protegido burocrata e tecnocrata, Seres acima de todos os comuns. Alguns destes iluminados, têm salário irredutível, não podendo ser removido do cargo, vitalício. Estão em palácios onde podem doravante expor suas convicções sem respeito ao senso comum, à moralidade média dos comuns, serão a Justiça em si, deuses da verdade. Eis a inacabável monarquia particular em plena República, cartorial, momesca. Mas pergunto: alguém desiste da possibilidade de tornar-se nobre ou rei? Quem não quer? Querem ser iguais aos que hoje existem ou pretendem mudar este status? Não seria esta parte centro da questão a ser analisada? As listas de candidatos estão lotadas. Levam ao pé da letra a lição de São Francisco de Assis, “aquilo que não puder mudar, aceite”.

Ninguém de sã consciência é poupado das ultrajantes óperas-bufa que são representadas simultaneamente, uma pior do que a outra, enrolando a Pátria em seus cenários. Um escândalo se sobrepõe ao outro na imprensa escrita e falada, já sem espaço para mostrar o acompanhamento de tanta barbárie intelectual e afronta ao senso comum. Não há possibilidade de o cidadão concentrar-se em um só, logo vem um ainda pior. Não é de agora, tem séculos, mas até quando ? Será que isto tudo é assim mesmo e só há no mundo esse modo de gerenciar a vida? De qualquer modo a solução nunca deve ser pela violência, mas pelo pensar em desconstruir este modo de Ser e adotar sistemas inteligentes, para colocar em prática os objetivos que estão na Constituição. Mas não há garantias que jovens, já tão condicionados pelas tendências atuais, não apelem para atos violentos em defesa de algum interesse de seu bolso e que coincida com algum outro momento, já que pensam estar o futuro tão distante mesmo.

Odilon Reinhardt.

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