terça-feira, 10 de setembro de 2013

Curumim, raízes. A cidade fica cada vez mais perto.



Que venham para a selva moderna, onde o invasor fez sua morada; que venham da floresta, da beira dos rios, das campinas e seus capões, hoje já diminutos oásis de pinheiros, flora e fauna da terra dos pinheirais. Venham para a cidade, onde é bem outra a realidade que os espera.

Aqui, curumim Tarobá, gente caça gente; põe fogo em gente de rua ou não; mata por dinheiro ou raiva do Próximo e sai andando como se nada tivesse acontecido; faz esquemas de trapaças e vingança para obter coisas e o poder; luta contra si mesmo e contra os outros; entra nas ocas de dormir para roubar coisas. Aqui, em cada esquina tem um perigo e quase ninguém está satisfeito. A maioria vive com medo e alguns, sendo exceção, apavoram a todos. Estes todos são as vítimas em potencial e andam de cabeça baixa, tenham ou não dinheiro. Alguns fazem protesto nas ruas e nada melhora. Alguns acreditam erroneamente no radicalismo, na violência, na anarquia. Outros querem discutir, dialogar democraticamente. Muitos esperam solução. Há insatisfeitos e satisfeitos com tudo isto, mas os satisfeitos tem medo de viver os itens de sua satisfação. Todos dizem que têm “vida moderna”, são atuais e politicamente corretos.

Venham índios!. Velhos e moços, brasileiros puros, venham ver o que, aquele que vocês chamam de “branco”, fez com a terra ocupada! De noite a cidade vira terra de ninguém, acidentes e tiros nesta floresta e muitos partem para o além. Em cada esquina a morte pode estar à espreita. Uma selvageria. É floresta de abaçai com muito abaité. Mulheres que querem ser homens e homens que querem ser mulheres. Assassinos e traficantes fazem ronda; ladrões ,como onças- sussuaranas, esperam a oportunidade. Há cobras, lobos, quatis, tatus, raposas e carcarás que você não identificaria de imediato como costuma fazer no mato.

Nas ocas de dormir, ocas, muitas delas empilhadas uma encima das outras, quase nas nuvens, tem seres da tribo que ficam na frente de caixas luminosas que lhes falam o que devem comprar e pensar. Ficam ali por horas, mudos. Não falam entre si. Cada um tem sua caixa e várias outras caixinhas onde falam e escrevem. No começo da noite, as caixinhas de cada oca também mostram as barbaridades de cada dia, violência e roubo do dinheiro da tribo; dão números sobre mortes da noite anterior, crimes hediondos jamais vistos em outros lugares do mundo, atrocidades e acidentes de carro. A cidade bonita em ruas e parques não é aproveitada de modo positivo.

Todo dia é a mesma coisa e nada acontece. Todos moram nessas ocas que são fechadas, cheias de grades, alarmes, segurança armada ou eletrônica com vigias, câmeras e porteiros. Vivem com medo do vizinho, do passante, do Próximo. Vivem com medo do medo, pois aqui mulher mata seu homem e vice-versa, filho mata os pais e a família, namorado mata a namorada. Gente anda em gangues para fazer coisas erradas. Mesmo na noite, alguns vão a ocas de barulho, onde comem, bebem, brigam escutam música muito alta, continuam com suas caixinhas iluminadas, falam pouco e usam muitas coisas para fugir da realidade.

Muitos gostam de se divertir vendo filmes de horror e terror, vendo uns matarem-se aos outros, matança, explosões, destruição, sempre em títulos negativos, pregando o caos e o fim dos tempos. Se você vier para a cidade, sua família será levada a ter uma caixa luminosa também e daí você poderá ver filmes como : Índice de Maldade, Pânico, Redação Mortal, Flashes de uma Psicose, Perigo por Encomenda, Os Matadores, Nascidos para Matar , Dementes, Queima de Arquivo etc. Na cidade os curumins da gente daqui e outros gostam de usar roupas de mensagem negativa, caveiras, morte, diabos, ossos e piratas. Fumam rolinhos de esterco de vaca e respiram linhas de farinha branca e dizem que “estão numa boa”. Depois acreditam que tudo volta a ser igual, nada muda. Voltam para suas ocas empilhadas ou não, onde ninguém se cumprimenta nem diz bom dia. Parece que se odeiam .

De dia, nas ocas de trabalho, onde passam de 8 a 10 horas todo dia, não se respeitam, lutam por lugares, poder e ter, uns contra os outros. Leem grandes papéis com coisas e fatos de ontem, olham números e tabelas, fazem mais papel e coisas de poluição e voltam para a oca de dormir, onde têm pouco tempo para falar com seus curumins e pias, descuidam deles e menosprezam os velhos de sua tribo.

Esta gente nada planta, nada cultiva, só gosta de papel e paga tudo com papel e plástico. Quando precisa de comida vai a roças onde tem de tudo, pega de tudo, mesmo sem precisar, e volta para a oca de dormir, onde fica gorda e depois doente. Faz reuniões de pajé e guerreiros em grandes lugares, ocas grandes de teto alto, onde escutam do abaré as lições de Tupã, mas depois esquece tudo e não pratica nada, mas sempre volta a estes lugares, como carneiros vão ao estábulo.

Você, curumim, saiba que o seu povo é feito de índios de povo valoroso, abaúna, donos da terra, hoje de futuro incerto, mas que já foram personagem da História do Mundo e da civilizaçãode, fato já mostrado em filmes, livros e teatro. Curiosamente a história conduziu para o fato que hoje o “branco” é que está decidindo o que fazer com os que de vocês ainda sobrevivem, inclusive com você.

Nos finais de semana, em grupos enormes, costumam reunir-se em grandes guarupês onde assistem 22 deles correndo atrás de uma bola. Simulam guerras, cantam hinos de agressão e depois vão pelas ruas quebrando coisas feitas e pagas pela tribo e caçando inimigos. Agridem uns aos outros sem pudor nem medo. Creem ser impunes, acima da lei de Tupã.

Guarani, tupi-guarani de todas as tribos, venham todos ver como a cidade pode acabar com vocês em um só dia! Aqui tudo é bonito, lustroso, brilhante, há ocas com coisas muito bonitas e vitrines luminosas, tem pajé para cuidar dos doentes e remédio para tudo, tem comida e muita coisa boa, mas muito branco está cego, perdeu o sentido da vida; muitos já estão malucos. O dito “branco “ não alcança a felicidade nem a consciência de boa referência, vive insatisfeito e em depressão num emaranhado de vazio, angústia, ansiedade, desconfiança e medo. Vai perdendo o crédito na boa-fé e nos seus irmãos. Fez da cidade uma complexidade barroca na medida em que valoriza os meios, um lugar desumano, cheio de truques, senhas, códigos, cartões, segundas intenções, pegadinhas. Exige de todos um nível de discernimento de super-herói, o que é quase impossível. Ninguém entende-se mais porque só pensa em si e seu umbigo. Tem doença invisível e tem depressão que os espíritos do mal trazem. Nenhuma pajelança consegue curar a cidade.

Se vocês índios vierem fugidos das selvas, que já estão acabando, estejam preparados para entregar suas almas, sua tradição e cultura em troco de nada, pois vão ser invadidos pelo vazio que assola o branco. A coisa aqui é maluca de verdade.

Na selva de pedra, irmão está contra irmão; não são amigos, são todos simplesmente “migos”, viram amigos ou inimigos conforme o interesse; a selva de concreto e caminhos de pedra não gosta de humanidade, de origens, só gosta de se perder no cipoal de sua própria mente, de sua realidade ambígua, de falsos propósitos criados por caciques detestados numa ciranda de destino incerto. O mundo aqui é de plástico, papel, concreto e vidro. E muitos têm orgulho de tudo que fizeram e fazem, dizem que é o “progresso”, algo que vem dos céus, inevitável, incontrolável e que têm que aceitar de cabeça baixa, mesmo que os reflexos para o humano são controversos em ações e reações e o grau de satisfação humana esteja sendo abalado.

Aqui, curumim, os viventes fizeram uma selva na qual vivem com pressa, são impacientes e intolerantes; há gente já insensível, calculista e frio. Talvez seja este o preparo para uma sociedade racional, automatizada, sem gente de coração humano. Mas por hora, se esta for uma infeliz transição, o que temos é uma série de muitos psicopatas, sociopatas e tantos outros com suas camufladas psicoses e doenças entre as duas orelhas. Tem pajé que só cuida da cabeça dos outros, trata de coisas invisíveis que a maioria menospreza em suas causas; já tem até curumim tratando de “coisas “ da cabeça. Doentes, curumins e outros sobrevivem com ervas que colocam em pequenos rolos de plástico, vidros escuros e que são vendidos em ocas onde o pajé fica atrás de um balcão só para isso, com muitas placas, anúncios e caixinhas bonitas .

Há tempo atrás, curumim, aqui viviam os tinguís, eles nem lutaram diante da invasão, foram se transformando, misturando. Seu último cacique, não vendo outra saída, fez o seguinte: “Ao pé da Serra do Mar, em algum trecho do caminho do Itupava, acontece a última pajelança tinguí. O cacique amuado, encontrava-se com um dilema: mandar todo o seu povo precipitar-se do penhasco do pico Marumbi, para não ceder ao povo invasor que subia a Serra ou, então, deixá-lo misturar e prosseguir no tempo.

A reunião épica adentrava a noite; a neblina do Iguaçu já ofuscava a visão de todo o pindorama, o pico Marumbi sumiu de madrugada. A tindiquera esfriava com a noite gélida sob o luar ao longe.

O cacique, usando de toda sua sabedoria, disse então aos pajés que todos deveriam retirar-se e que ele passaria a noite em vigília, junto ao fogo, bebendo da água dos seus rios, falando com o ar, andando por sua terra, consultando sua flora e fauna pelos caminhos da mata de araucárias, tarumãs e imbuias, de modo que pela manhã saberia o rumo a seguir e o que fazer.

Assim, o último e já velho cacique tinguí, sentindo que sua gente já estava se misturando aos novos chegados nas minas de ouro, na criação do gado e nos serviços do dia à dia da Core-tuba, naquela manhã, do alto do Anhangava, olhando o caminho do sol, que ia desfazendo a neblina, aceitou a verdade de que seria difícil sua gente sobreviver intacta nestes campos e pinhais.

Vendo que o tempo de sua vida já se encerrava, o cacique clamou ao ar que condenasse todo e qualquer dos invasores a respirar os mesmos ares cheios de amor por essa sua terra e do mesmo modo que os tinguís ainda respiravam disso pudessem se orgulhar.

O ar, atendendo ao pedido do cacique decretou que cada novo habitante fosse condenado, daquele dia em diante, a respirar e viver deste ar impregnado de intenso amor, fazendo nele reviver e eternizar cada Tinguí que sonhava com este solo até então só seu e abençoado.

E assim chegamos todos ao hoje, onde a Coretuba transformou-se em Curitiba, onde na cidade em sua gema nativa, ainda vive a alma mameluca da gente tinguí, gente do planalto, dos capões, dos charcos de água passiva, onde nasce o Iguaçu, das várzeas do rio Ivo e das colinas depois do rio Atuba.

O velho cacique tinguí, em atitude pacífica e de grande superioridade, conseguiu fazer com que sua gente sobrevivesse e fosse preservado o amor que tinha pela terra que Deus havia dado neste mundo, de modo que hoje todos que aqui chegam, respiram e trabalham para viver, só obtém sucesso quando agem usando aquele mesmo amor que lá do fundo lhes vem.

A terra, hoje, cresce, recebe gente de todos os lugares, prospera e tem futuro promissor, tem vida positiva e o Paraná aqui vai conseguindo tornar-se luzeiro, com a sua gente orgulhando-se de Curitiba que vive assim de tantos amores. E por força dessa lenda, todo e qualquer vida ou empreendimento que aqui seja feito, sem amor à terra e sua gente, está fadado a ser desfeito e o ar inconformado torna-se rarefeito e faz sempre lembrar a lenda do cacique que, com inteligência, fez seu povo seguir para o seu destino de sucesso em cada feito”.


Muitos anos depois. Não adiantou muito, o amor a esta terra e cidade não aparece com frequência. Os empreendimentos e negócios são só interesse passageiro, fogo fátuo ou de fachada; muitos gostam de se enganar e iludir uns aos outros. Muito do que se faz, só é feito por mais papel e com descomprometido amor à terra ocupada e sua gente. O cacique Tinguí jogou seu desafio, ele vinga até hoje, por isso muita coisa do branco é só por pouco tempo, não persiste; assim, seus caminhos ficam bonitos ao início, mas perdem o brilho, ficam destruídos, suas ocas apodrecem ou ficam comprometidas; suas ocas de trabalho não perduram ou só criam seres mais doentes e as ocas de dormir ficam cada vez mais em silêncio. Pensa o branco que a terra é eterna e não vê que está acabando com muito que nela existe.

Mas a gente desta selva não gosta de oposição e de crítica, gosta de errar e cometer sempre os mesmos enganos. A tribo da cidade é assim.

E hoje, curumim, como todo dia, deve ser dia de índio. Qual Índio, o da floresta ou o da selva de pedra? Que selva, a da cidade ou da floresta? Se não há mais floresta, só pode ser a da cidade. Pode? Curumim, se seu cacique e pajé decidirem mudar para a selva de pedra, não venha, fique aí, nem que seja para morrer com dignidade. A cidade, selva de pedra, já está ficando inabitável por seres humanos.

Já se passaram 513 anos de Brasil e o invasor ainda tenta fazer na terra ocupada um local bom para morar. O chamado por vocês de “branco “ é hoje uma idiossincracia de todos e tudo, é mistura de godos, visigodos, hunos, alanos, alamanos, ostrogodos, vândalos e burgundios, suevos entre outros que viviam em tribos na Europa e Ásia. De engodos em engodos, até agora estão tentando fazer um local de ocas de felicidade, mas só vivem infelizmente ansiosos, insatisfeitos, sempre querendo mais coisas do que têm, não conseguem acabar com um vazio que os invade cada vez mais. Muitos já parecem estar desesperados, inseguros, instáveis, estressados, irremediavelmente ansiosos, perdidos na estrada da existência que conseguiram.

A esperança é que um dia vão acertar, espero que não seja tarde demais. No momento estão desperdiçando oportunidades para construir uma sociedade com indivíduos tão sólidos e serenos quanto as suas construções materiais, garantindo assim a sustentabilidade humana de quem vai usá-las e preservando a liberdade, a criatividade , e a dignidade do Ser.

Os adoradores das coisas e do umbigo acham, no entanto, que tudo isto que só acontece por falta de dinheiro e boas condições de vida, portanto, creem que o motivo causador é a falta de coisas. Mas o motivo é outro, pois como explicar que o povo da cidade tem muitas coisas, mas vive mal, insatisfeito, amuado, violento? Poucos tem observado que há décadas o verdadeiro ataque não está sendo feito no bolso para comprar coisas, nos edifícios brilhantes e nas praças iluminadas e bonitas, mas na cabeça do vivente, alterando sua forma de pensar, condicionando sua vida, afastando-o da natureza humana. Mas você nem ouse provocar esta discussão, já que ninguém vai entender ou se aprofundar nela .

Curumim Tarobá, não pense que gostei de escrever isto. Não sou Renoir nem Matisse nem serei Salvador Dali, mas é esta a pintura rupestre que pude fazer das tendências que hoje tem andado na selva da cidade. Mais feio que boitatá.

Ontem mesmo, piá, vi na feira-livre de domingo de manhã, alguns de sua Nação, vindos para a cidade. Eram mulheres com algumas crianças, como você. Ficavam ali humildes e tímidas, à margem, com seus cestos de taquara pintada, tentando vendê-los, enquanto as crianças brincavam entre latas de lixo e frutas podres. A gente da cidade passava olhando, sem saber o que fazer, o que pensar. Passavam olhando aqueles seres humanos, brasileiros natos, com a curiosidade de quem olha os bichos do zoológico. Iam se afastando, não compravam cestos, nada. Assim, este, infelizmente, poderá ser o lugar que lhe caberá aqui, a margem. Viver à margem de tudo e de todos até conseguir, se conseguir, igualar-se a esta gente da selva daqui. E quando você se igualar, terá deixado seu povo, seu valor, sua cultura e tradição por nada melhor, se a cidade continuar aceitando a evolução de suas más tendências, que hoje a estão colocando de joelhos perante a História.

A cidade já é um mundo complexo, com regras e exigências , que estão difíceis até para seus próprios habitantes. É exigido uma atualização e um discernimento muito grande para sobreviver nesta selva. Os bons caciques e as altruístas pessoas interessadas no coletivo e bem comum já não sabem qual é o fio da meada, qual o essencial para normalizar a vida aqui. Soluções parciais são implantadas, mas o todo volta a confundí-los e acaba por anular a obra mais útil e moderna que seja feita.

Curumim Tarobá, você e seu povo são livres na locomoção, mas não venham para cá se não tiverem certeza que pode enfrentar a complexidade instalada. Tem muita gente que está fugindo da cidade. Boa sorte.


Odilon Reinhardt.


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